DESCUIDO

          O pastor Isaac, ao adentrar o templo, levou imenso susto. Sentado na primeira fileira de cadeiras estava Bil Uil. Receoso retroceder meditando na criação de um argumento, dirigiu-se para trás do porta-bíblia e nele descansou o livro sagrado. 

           –Senhor Bil Uil... O que deseja de mim, senhor Uil? Caso seja a minha alma, estou disposto a servi−lo. Leve−a que Deus resgatará.
          −Você é palhaço. – afirmou Bil Uil.
          Uma coruja ensaiava deixar a toca. Isaac, a qual havia observado, ficou na expectativa de que levantasse voo.
          −… Não sou palhaço, senhor Bil Uil.
          A coruja voou. Cruzando o templo, batendo as asas, Bil Uil a olhou. Isaac aproveitou o descuido, atirou a bíblia sobre ele e correu. Bil Uil sacou e disparou, porém, o único estrago causado pelo arrogante projétil foi destruir a porta que o pastor havia escapulido e fechado.
          −Ele está aqui dentro! O desgraçado está aqui dentro! – gritava o pastor.
          Acuado, se viu atônito:
          −Pastor do inferno!
          Pensou em escapar pela porta principal do templo que estava fechada, porém, logo entendeu que já deveria está apinhada de curiosos, soldados e protetores.
          −Que merda! – balbuciou tenso.
          Soldados e protetores ficaram receosos de invadir. Havia uma conversa de que o tambor de sua potente arma acomodava doze cartuchos.
          Arma em punho, Bil Uil suava. Estava convencido de que seria abatido, porém levaria um bom número consigo.
          −Adentrem! – intimava−os, meditando no que fazer.
          À direita, havia uma porta que estava fechada. Analisando para onde daria, escutou, vindo através dela, um ruído de vidro espatifando. Empunhando firme o calibre 76, fabricado especialmente para ele, ficou atento ao que resultaria. A porta foi aberta por Estefânia que disse:
          −Venha, Bil! Há dois cavalos roubados.
          Imediatamente ele obedeceu. Saltaram a janela e montaram.
          −Os desgraçados estão fugindo! – alardeou alguém.
          Uma intensa perseguição iniciou−se. Ganharam a empoeirada avenida principal. A senhora Luana e o esposo, que haviam escutado a gritaria, saíram à janela. Avistaram o casal passar num desabalado galope. O senhor Blake disse que era Estefânia e, certamente, Bil Uil. À senhora Luanda aplaudindo entusiasticamente gritou:
          −Viva Estefânia e Bil Uil!
          Passou, no ínterim, um mundo de perseguidores.
          Estefânia, montada num cavalo mais veloz, ia à frente decidida a conter os perseguidores que disparavam. Apanhou o rifle no lombo do cavalo, voltou−se e disparou escutando imediatamente o cocheiro gritar:
          −Matou uma dama, sua desgraçada!
          Bil Uil a alcançou e, ao lado dela, ordenou que fosse para a Toca do Lobo e que iria retornar.
          −Retornar para quê, Bil?
          −Siga para a toca e me encontrarei com você.
          −Teria eu assassinado, Bil?
          −Não sei Estefa.
          O nostálgico tratamento carinhoso fez com que ela ficasse o olhando, e seguiu. Bil Uil, que muito bem conhecia as ruas da cidade, retornou. Ao avistar Isaac narrando para um grupo de pessoas os momentos difíceis vividos, entendeu que a estatura do ludibriador pouco importava, estava no alto. Então, ao passar pelo grupo num ligeiro galope, disparou explodindo o crânio de Isaac.
          −Deus! – lamentou alguém.
          Houve desmaios.
          Tiros e mais tiros foram disparados contra ele, mas conseguiu escapar.
          Ao chegar à gruta, encontrou Estefânia desolada sentada numa pedra.
          −Assassinei uma pessoa. – disse ela chorosa.
          Nada comentou. Levou os cavalos para o interior da toca e, ao retornar, sentou−se num canto qualquer e ficou olhando a mulher.
          −Soube de alguma coisa, Bil?
          −…
          −Assassinei?
          A falta de resposta confirmava o que não queria escutar. O cocheiro não havia mentindo. Por ironia, a mulher fora alvejada na cabeça. Entretanto, o impacto teria sido desprovido de extravagância.
          −Assassinei, não foi?
          −…
          −Responda, Bil?
          −Sim.
          −... Meu Deus, como a vida de uma pessoa pode mudar assim? – questionou.
          −Deixa−me constrangido. – retrucou Bil Uil quieto e pensativo.
          As aulas haviam sido suspensas. Os parcos alunos deixavam a escola acompanhados dos responsáveis.
          −A professora vai ser presa, bi?
          −Não sei, minha bis. – respondeu o juiz.
          −Estou triste, bi.
          −Eu também.
          A vítima, que havia sido alvejada e morta ao desembarcar da carruagem, resultado do crime cometido acidentalmente por Estefânia, era não mais que a “dama” que havia sido enviada para ocupar o Salão Manarry. O idoso, doutor Klaus, vestido no surrado casaco, ali se encontrava apenas para constar. E o Xerife, ao lado do James, os únicos restantes algozes de Bil Uil, conversavam:
          −Com que cara ficaremos?
          −Desacerto dos infernos.
          Roy, por sua vez, encontrava−se no jornal da cidade, numa pequena tipografia, preparando uma publicidade.
          O dia tornou−se noite. Favorecidos pelo silêncio, pela certeza de que não seriam importunados, pelo abatimento e pela baixa temperatura, Bil Uil e Estefânia dormiram. No entanto, quando acordados, permaneciam mudos, reflexivos. Bil Uil havia providenciado galhos secos de árvores e acendido uma fogueira na entrada da toca.
          −Meu Deus! – resmungou Estefânia olhando em volta.
          Escuridão. Milhões de estrelas e tímida lua. Piados de pássaros disputando melhor abrigo e cânticos de grilos… Uma coruja acomodada numa pedra elevada olhava para eles.
          − ... O que faremos? – perguntou Estefânia com voz entristecida.
          −Fugiremos.
          –Fugiremos?!
          –Só depende de você. – respondeu Bil Uil ascendendo a cigarrilha com a brasa de um galho.
          −Serei uma fugitiva?
          −Demos sorte, Estefa. Escapamos por pouco. Em contrário, a essa hora, já teríamos sido enforcados.
          Estefânia, mantendo o desconforto que sentia, compreendeu. Conhecia a região. Meditou e disse que, através do telégrafo, se comunicava todas as noites com os pais.
          −Ficaram preocupados por hoje. – complementou.
          −Sofrerão um baque quando souberem. – replicou Bil Uil.
          −… Eu, uma assassina…
          −Sinto por tudo. É o que posso dizer.
          Ficou o olhando e, perdendo a timidez, perguntou se havia alguém na vida dele.
          −Os meus pais adotivos.
          −Viveu para esse momento?
          −Creio que sim.
         Silenciaram. Estefânia, angustiada, balbuciou:
          −… Meu Deus…
          Bil Uil a olhou. Mas logo levou o indicador aos lábios. Levantou−se e empunhou o robusto calibre 76, mirando para o acesso à clareira.
          −Alguém se aproxima. –avisou.
          Estefânia correu para o fundo da caverna. No entanto, para a surpresa dele, retornou em poder do rifle e posicionou−se ao seu lado.
          −Bil Uil? – escutaram.
          −Sam? – perguntou Bil Uil.
          −O próprio.
          −Quem está com você?
          −Quem está comigo, Uil?
          −Falo sério, Dam.
          −Não estou brincando, Uil.
          −Apareça, Dam. – ordenou Bil Uil sem se descuidar.
          Dam, trajado de Carambola, surgiu arrastando o cavalo pela rédea. Havia no lombo do animal volumoso fardo. Bil Uil perguntou se era um corpo. Dam respondeu que eram mantimentos.
          −Irão precisar. – explicou livrando o animal do peso.
          −Mantimentos, Dam?!
          −Mantimentos, Uil.
          −Como soube que nos encontrávamos aqui?
          Dam respondeu dizendo que não queria reviver o passado, mas a caverna situada abaixo era velha amiga de longa data.
          −… Boa noite, senhorita Estefânia!
          −Boa noite, senhor Dam. – respondeu Estefânia desajeitada.
          Disse ainda Dam que se o perguntasse por que não tinha o visitado responderia que, às vezes, se incompatibilizava com Deus. Então a bebida e a solidão eram as melhores companheiras. E, se o perguntasse por que estava trajado de Carambola, responderia que era para poder caminhar tranquilo pela cidade, embora ciente de que a aparência dele por si já era de um Carambola rebelde. Visitava-os para supri−los com comida e, infelizmente, para dar uma de mensageiro do cão.
         −Como assim? – quis saber Bil Uil.
          Retirou do bolso um cartaz, desdobrou e o entregou. Bil Uil dirigiu−se para a luz da fogueira e Estefânia o seguiu.
          −Não é possível! – reagiu ela ao ler.
          Sob o desenho dos rostos deles havia escrito:
          “Procurados vivos ou mortos”. “Desertora do cumprimento do dever. Ladra de cavalo e assassina. Amante do fora da lei Bil Uil. Procurado por três estados por assassinato e roubo a banco.”
          −Roy distribuía. Há cartazes por toda cidade. – esclareceu Dam.
          Estefânia levou a mão à cabeça.
          −Meu Deus!
          Dam disse que falava com amigo e não como foguista. A situação deles era a pior possível.
          −Parece−me que a sua também, Dam. – replicou o amigo Bil Uil.
          −Parece não, Uil. Roy é um demônio, ateou fogo no estábulo com animais e tudo.
Abandonar Tylide era a melhor das ideias. Só não aconselharia partirem naquele momento por causa do volume de água e da correnteza do Rio Voraz. Estavam aproveitando para escoar madeira roubada das terras dos Carambolas. Havia trabalhadores forasteiros os quais não representavam perigo, porém eram auxiliados por Carambolas rebeldes, muitos mercenários.
          −Até então, Uil, – continuou – aqui é o local mais seguro. Ficarei de olho no escoamento da madeira assim que acalmar, coisa prevista para daqui a dois ou três dias, quando deveremos partir. Sairemos em Guelupe. Lá ficarei eu, e vocês embarcam no trem e seguem para onde desejarem. Para o seu atual habitat, Uil. Lá há advogado. Aqui só resta a vocês e, a mim, também a forca. Roy já adicionou uma terceira.
          −Meu Deus! – não cansava Estefânia de recorrer.
          Dam disse que havia trazido bons suprimentos. Retornaria para o “lar”, ficaria de olho nas palavras Dele – lendo a bíblia – e na ação do inimigo.
          −Cuidem-se. – desejou.
          −Você também, Dam. – retribuiu Estefânia.
          Dam, ao partir, Bil Uil recebeu novo apelo de Estefânia:
          −Meu Deus que situação desagradável. Converso todas as noites com meus pais… A minha vida emborcou de um momento para outro. Assassinei acidentalmente uma pessoa, estou condenada à forca, mas, para que não seja enforcada, terei de tornar−me uma foragida.
          −Deixa−me constrangido. – repetiu Bil Uil.
          −… Para onde vai? – perguntou ela. Estava apavorada.
          Bil Uil fora bisbilhotar as mochilas trazidas por Dam. Retirou duas maçãs, entregou−lhe uma e sentaram−se junto à fogueira.
          −Nunca nos desentendemos, Bil. Convivemos anos juntos sem uma única rusga sequer.
          −Recordo-me de você naquele dia. – disse ele.
          −Da partida?
          −Sim.
          −Mamãe apertava o meu braço. Sentia vontade de voar na garganta dos cínicos e arrancar-lhe o gogó com os dentes. Rodopiaria a dama Manarry pelos cabelos e atiraria longe…
          −Como soube da minha aflição na igreja?
          −Emily, uma aluna, disse−me: “Bil Uil está encurralado na igreja, professora.” Como poderia deixá−lo naquela situação? Sinto−me ávida pela minha atitude, mas angustiada. Afinal sou uma assassina.
          −Fico agradecido por ter me salvado.
          Ela olhava-o pensativa e ele lhe perguntou:
          −Acredita que eu seja assaltante de banco.
          − Não.
          Olhando as estrelas e a tímida lua, comeram a maçã.
          −… Dam falou em dois ou três dias. – conversou Bil Uil.
          −Dois ou três dias... Em Guelupe, tentarei manter contato com os meus pais.

CAPÍTULO - VIII
DIA SEGUINTE

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